Julho terá oito eventos de parapente e consolida o Brasil como potência do voo livre

Após um grave acidente e a perda do braço esquerdo, Stefano reconstruiu sua vida — e criou o próprio caminho de volta ao voo livre.
Algumas histórias não são apenas histórias — são testemunhos. Elas atravessam o tempo, o corpo e a dor para revelar o que há de mais potente no ser humano: a capacidade de se reinventar quando tudo parece perdido. A de Stefano Parenti Filho é uma dessas.
Nascido em Mogi Mirim (SP), hoje com 69 anos, ele carrega no peito um amor pelo voo que nasceu cedo demais para ser casual. Ainda menino, por volta dos quatro anos, sonhava que voava com o próprio corpo. Nenhum aparato. Apenas ele e o céu. Não sabia ainda, mas aquilo não era só um sonho. Era destino.
O tempo passou, os filhos chegaram, os deveres também. Mas o chamado continuava lá — quieto, persistente, à espera da hora certa. Ela veio em 2002, no alto do Cristo Redentor de Poços de Caldas, quando viu pela primeira vez parapentes colorindo o céu. Foi como se algo antigo se acendesse por dentro. Um reencontro com a própria essência.
Vieram as aulas, os amigos, os finais de semana na rampa. Vieram os voos duplos com a família, as conquistas pessoais, a alegria pura de flutuar. Mas logo, o prazer do voo se somou à vontade de evoluir. Stefano queria entender mais. Voar melhor. Tornar-se técnico sem perder a alma do voo livre. E fez isso com dedicação exemplar.
Começou com velas de escola, e aos poucos passou a buscar velas de maior performance. Trocou, testou, experimentou. Fez cursos, participou de SIVs, conversou com pilotos mais experientes, observava cada detalhe. Em 2023, após muitos anos acumulando experiência, chegou à categoria Serial, voltada para voadores que desejam explorar o limite técnico sem entrar no universo das comp wings. Era exigente, e exatamente por isso, perfeita para ele naquele momento.
Nas palavras dele: “Logo estava eu totalmente integrado a ela, progredindo ainda mais a cada voo, participando ativamente dos campeonatos, estava realmente muito feliz.”
Participando do Campeonato Brasileiro de Parapente em Governador Valadares
Foi nesse ponto que ele mergulhou também no universo das competições. E não era pela disputa. Era pelo ambiente. Pela entrega. Pela curva de aprendizado que cada etapa oferecia. Nos campeonatos, Stefano encontrava aquilo que mais valorizava no voo: o desafio constante, a escuta atenta, a convivência com quem voava há mais tempo — e a leveza de uma comunidade que, mesmo entre pilões e goals, mantinha o espírito fraterno e alegre que o cativava.
Ele se sentia parte daquilo. Um piloto pleno. Um apaixonado em constante evolução.
Mas foi justamente em um dia promissor de competição, na 1ª etapa do CPP 2024, em Bela Vista, que o voo encontrou seu ponto de ruptura.
Na véspera da primeira prova oficial, participou do treino livre e completou o percurso com excelência. A vela recém-revisada voava com perfeição. No sábado, dia 6 de abril, fez uma ótima prova: chegou em terceiro no gol, em uma das melhores performances de sua vida. Estava animado, confiante, feliz com a evolução e com tudo o que havia construído até ali.
No domingo, 7 de abril, segundo e último dia da etapa, Stefano chegou cedo à rampa. Abriu a vela, checou o equipamento. A condição estava diferente: o vento um pouco mais forte e lateral. Após o briefing e a montagem da prova, ele decidiu esperar uma melhora.
Quando o vento parecia ter baixado e alinhado, alguns pilotos começaram a se equipar e decolar. Stefano seguiu o fluxo. Na sua frente, estava o piloto e amigo Alberto H. Kawakami, que tentou decolar, mas foi arrastado para a lateral da rampa. Retornou com a vela repolhada, abrindo espaço para Stefano.
Ansioso para se posicionar bem no start, ele se concentrou. A vela foi checada com ajuda de outros pilotos. No exato momento em que tentou puxá-la pela segunda vez, sentiu o vento entrar mais forte e ligeiramente de lado. Estava de tênis, e o piso de grama íngreme e irregular contribuiu para o desequilíbrio. Foi arrancado do solo twistado — com a vela inclinada e puxando para a esquerda. Sem tempo de corrigir, foi lançado com muita energia contra uma pedra próxima à área de decolagem.
O impacto foi brutal. Fraturas múltiplas: cinco costelas, o quadril, o pulmão perfurado, o diafragma rompido e o braço esquerdo dilacerado. O sangramento era intenso e potencialmente fatal. Mas ali estava Alberto, o mesmo que havia abortado sua decolagem momentos antes. Médico e piloto, ele correu ao lado de outros colegas e aplicou, com precisão, um torniquete no braço de Stefano. A ação foi decisiva. Foi o que manteve a vida dele acesa até a chegada da ambulância.
Foi a diferença entre viver e não viver. Entre o fim e um novo começo.
Stefano foi levado ao Hospital de Pouso Alegre. Após rápidos exames, um médico ortopedista se apresentou e informou com clareza a gravidade das lesões: ele corria risco de morte. O braço esquerdo, severamente comprometido, teria que ser amputado imediatamente, acima do cotovelo. Não havia tempo, nem espaço para alternativas. “Meu braço teria que ser amputado imediatamente”, escreveria depois. “Me apresentando um formulário para que eu autorizasse essa operação, não me dando nenhuma alternativa.”
O tempo urgia. Stefano assinou. E depois, o silêncio da anestesia.
Recuperação na UTI
Na UTI, já no pós-operatório, ele despertou — sem o braço esquerdo, com um dreno no pulmão, uma sonda na uretra, e o corpo atravessado por dores. Mas também com serenidade. “Em paz, com o coração e a alma transbordando de gratidão a Deus por estar vivo”, ele escreveu. Com espírito resiliente e a certeza de que ainda tinha uma família muito linda, amada, e que o amava, e amigos queridos que sempre o apoiaram — e que não iriam faltar nessa nova jornada. A amputação era real. A fragilidade também. Mas havia algo que seguia intacto: a clareza de que a vida ainda pulsava dentro dele — e que ela ainda podia ser plena.
Vieram semanas difíceis. Uma segunda internação, uma nova cirurgia no abdômen para corrigir uma hérnia diafragmática, dores constantes, mobilidade limitada. Mas mesmo ali, no mais íntimo da recuperação, Stefano já começava a sonhar de novo: como voltar a fazer tudo o que amava? Voar, nadar, andar de moto?
E antes de alcançar os ares, ele precisou reconquistar o chão.
Com os amigos Alberto Kawakami e Márcio dos Santos
Foi com determinação silenciosa que buscou a reabilitação no Instituto Lucy Montoro, onde mergulhou em sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia e esportes adaptados. Foram meses até que, com persistência, conseguisse caminhar sozinho — e, depois, tirar uma nova carteira de motorista adaptada. Retomar o volante foi seu primeiro grande voo. Uma devolução de autonomia. Um novo tipo de liberdade.
Mas o sonho que o movia desde a infância ainda batia à porta.
As próteses oferecidas no mercado eram caras e pouco funcionais para os comandos específicos do parapente. Então ele fez o que sempre fez diante dos limites: foi além. Criou, com a ajuda de sua mulher, Regina, uma prótese provisória. Um dispositivo artesanal, rústico, testado no solo, ajustado milímetro a milímetro com o apoio de amigos. O objetivo era simples e gigantesco: descobrir se ainda era possível voar.
Foi no Pico do Gavião, em um sábado de vento constante, a vela subiu com doçura. Ele sentiu o controle. O momento era dele. E ele decolou.
Não foi apenas um voo. Foi um renascimento. Um rito íntimo de força e esperança, onde o que parecia perdido se revelou ainda mais inteiro. Poucas semanas depois, na Ilha do Ar, voou novamente — e consolidou de vez aquilo que ninguém mais poderia contestar: o céu ainda era sua casa.
Primeiros voos após o acidente, no Pico do Gavião em Andradas (MG)
Hoje, Stefano é mais do que um piloto de parapente. É símbolo vivo da resiliência. Sua história nos lembra que o voo livre não acontece só no ar. Ele começa em cada pequeno gesto de superação, em cada passo da recuperação, em cada plano sonhado com fé.
E, talvez, nos diga algo ainda maior: que o corpo pode cair, mas o espírito — esse — segue alçando voo.
“Sem o braço, é verdade, mas com outras asas, para voos ainda mais altos e distantes.”
E com ele, voltamos a enxergar no voo livre algo que vai além da técnica e da performance: uma força que resiste, se transforma e continua — mesmo quando tudo parece perdido.
Bem vindo de volta, Stefano.